1984, Admirável Mundo Novo, Fahrenheit 451, na Literatura. Equilibrium, Brazil, Logan’s Run, no Cinema.
O que é que todas estas obras têm em comum? Sugerem, no campo da ficção, como é que podem terminar os sonhos de criar sociedades perfeitas: em Estados totalitários, absurdos, em que há uma crescente perda de liberdades dos seus cidadãos e em que se acaba, inevitavelmente, a impor pela força uma fachada de felicidade que esconde o verdadeiro terror dos seus cidadãos.
Note-se que o ponto de partida é sempre o mesmo: a ambição de criar uma sociedade perfeita, em que todos sejam felizes. O fim também é recorrente: terror, falta de liberdade, tirania, fome, assassinatos.
Mas isto é na ficção. E na vida real?
O fascismo (https://pt.wikipedia.org/wiki/Fascismo), com líderes como Mussolini ou Hitler, que dominou a Europa nos anos 20 e 30 do Séc. XX, surgiu com a boa intenção de estabilizar a sociedade e proteger os seus cidadãos. Como? Através de Estados totalitários de partido único. No que é que resultou? Em ditaduras e milhões de mortos.
O comunismo (https://pt.wikipedia.org/wiki/Comunismo), que teve na União Soviética e na República Popular da China os seus expoentes máximos (pelo menos, em termos de escala), surgiu com a boa intenção de criar uma sociedade mais igualitária, livre e com abundância de recursos. Como? Através de Estados totalitários de partido único. No que é que resultaram essas experiências? Em ditaduras e milhões de mortos.
Muammar al-Gaddafi, líder da Líbia durante 42 anos, escreveu o “Livro Verde” (https://pt.wikipedia.org/wiki/Livro_Verde) onde defendeu a Democracia Direta (o povo é que decide), nobre intenção. No que é que resultou? Numa ditadura brutal e repressiva (e não, o povo não decidiu).
Salazar em Portugal, Pinochet no Chile, Ceausescu na Roménia, Noriega no Panamá, Idi Amin no Uganda, Saddam Hussein no Iraque, Franco em Espanha, Pol Pot no Cambodja, ou a família Kim na Coreia do Norte, são apenas alguns dos exemplos mais famosos de como já a maioria dos países no Mundo passaram, num momento ou outro da sua História, por regimes ditatoriais, sendo que em 2020 mais de 50 países são ditaduras e/ou limitam excessivamente as liberdades dos cidadãos. Para aprofundar mais o tema dos desafios que as democracias atravessam atualmente, deixo aqui um artigo muito interessante da organização Freedom House: https://freedomhouse.org/report/freedom-world/2020/leaderless-struggle-democracy
Infelizmente, não faltam exemplos na História de “experiências” governativas que começaram com boas intenções e terminaram, na vida real, como as obras de ficção que citei: terror, falta de liberdade, tirania, fome, assassinatos.
E, atrevo-me a prever, futuras experiências que tenham o mesmo fim de criar sociedades perfeitas vão terminar sempre assim, ou seja, mal, muito mal.
Passo a explicar o porquê dessa previsão.
Caro leitor, faça comigo um exercício de imaginação. Imagine que tem um passatempo que adora e a que dá bastante importância. Por exemplo, fazer castelos de cartas. E que está há anos a montar um gigantesco castelo de cartas. Esse castelo é o seu orgulho, o trabalho da sua vida. Só você trabalha nele, fruto dos anos de experiência que já acumulou. Mais ninguém no país tem tanta experiência com castelos de cartas. O seu castelo é perfeito. Mas um dia os seus vizinhos decidem que você vai parar de pôr cartas no castelo e que um chimpanzé irá tomar o seu lugar. Põem uma carta na mão do chimpanzé, ele aproxima-se do castelo e você assiste impotente ao que vai acontecer ao trabalho da sua vida.
Como é que acha que se sentiria? Confortável com a ideia de que o trabalho da sua vida poderia ser destruído? Aceitaria de bom grado que os seus vizinhos decidissem por si o destino do seu castelo de cartas?
Acho que não. Eu ficaria em pânico, acharia extremamente injusto, acharia uma loucura alguém querer pôr em risco o castelo perfeito sem razão aparente. E digo-lhe que 99% das pessoas teria a mesma reacção.
Agora imagine que em vez de um castelo de cartas é um país, que você é o Presidente desse país, o qual tem desenvolvido com o seu esforço e dedicação, há anos. Ninguém tem mais experiência de governação. E que os seus “vizinhos” afinal são os eleitores e que o “chimpanzé” é o futuro Presidente. Sentir-se-ia confortável com a ideia de alguém vir “destruir” o país que desenvolveu?
Não, não sentiria. E a tendência natural seria tentar impedir isso. Primeiro, tentando convencer os eleitores. Depois, caso isso não funcionasse, tentando limitar os “estragos” que eles poderiam fazer e, por fim, simplesmente impondo a sua vontade e reprimindo quem discordasse.
Neste momento, o caro leitor estará a pensar que nunca faria tal coisa, que é um defensor da liberdade, que toda a gente tem direito à sua opinião e que a democracia é feita de diversidade. Você até pode ser uma exceção e nunca faria tal coisa, mas os regimes que citei acima também começaram com boas intenções antes de caírem no totalitarismo.
Aliás, nos exemplos que citei do fascismo e do comunismo, tais regimes são, por definição, totalitários, portanto quem os apoia sabe à partida que o objetivo é que, a longo prazo, se criem sociedades em que não há espaço para divergências.
Há quem prefira isso. Quem, em nome do sonho de um Mundo perfeito, esteja disposto a aceitar ficar privado da sua liberdade de pensamento e de expressão. Mas quão perfeito será um Mundo em que o indivíduo é esmagado a favor do Estado, em que não podemos expressar-nos sem o terror de sermos castigados pelo Estado? Um Estado assim até pode garantir “casa, pão e habitação” para todos, mas será que o preço de pagarmos com a nossa liberdade compensa?
Uma visão humanista da sociedade acredita que podemos fazer melhor, acredita que o ser humano tem potencial para criar sociedades cada vez melhores e dar condições de vida cada vez melhores aos cidadãos. Mas não acredita numa sociedade perfeita porque sabe que isso é impossível de atingir. Porque criar uma sociedade perfeita significa criar o paradoxo de que a partir desse momento já ninguém pode “mexer”, já ninguém pode alterar nada, melhorar nada, propor nada, porque de “perfeito” já não se passa e porque haverá quem não queira arriscar estragar essa perfeição, nem que para isso tenha que reprimir o livre pensamento e impor a tirania o que, inevitavelmente, acontecerá sempre, acabando por destruir a tal sociedade “perfeita”. Daí o paradoxo.
O povo, na sua sabedoria, tem uma expressão: “O perfeito é inimigo do bom”.
Vamos tentar ter um Mundo bom, e cada vez melhor, assente na democracia, na liberdade e na solidariedade. Mas vamos evitar cair na armadilha de querer ter um (impossível e perigoso) Mundo perfeito!