Na altura em que este artigo está a ser escrito (Junho de 2020), os EUA estão a viver o maior período de instabilidade social motivado por questões raciais desde o assassinato do Dr. Martin Luther King Jr. em 1968. No presente, o motivo das contestações sociais foi o homicídio de um homem negro (George Floyd) às mãos de um agente policial branco, o que gerou uma onda de indignação generalizada nos EUA e, por solidariedade, um pouco por todo o Mundo, não só pela vítima em si, mas também pela forma como os negros são tratados em sociedades em que são minoritários.
Não vou falar dessa situação em particular, nem do tema da violência policial (nos EUA e não só) ou de como a mesma se relaciona com distinções entre raças, etnias ou cores de pele. Isso será motivo para outro artigo. Quero apenas falar de raças. Ou melhor, do conceito de “raça”.
Mas vamos começar pelo princípio. E o princípio foi a “Criação” do ser humano. OK, tenho que fazer um aviso. Se acredita que o ser humano foi “Criado”, tal como existe hoje em dia, por uma entidade sobrenatural, se calhar é melhor parar de ler o artigo por aqui ou continuar a ler por sua conta e risco, visto que o resto do artigo não vai ser propriamente compatível com as suas crenças.
Mas se acredita na teoria científica da evolução, continuemos.
Hoje em dia, nos mundos da Antropologia, Paleontologia, Genética, Biologia, e afins, é consensual que o ser humano, para chegar ao que é hoje, evoluiu ao longo de milhões de anos (desde os primeiros primatas há 70 milhões de anos, mais milhão menos milhão), até ao Homo Sapiens há cerca de 300.000 anos, a espécie a que todos pertencemos. Já nos últimos 300.000 anos temos estado basicamente na mesma, sendo agora um pouco menos peludos e mais conversadores, mas não sofremos grandes make-overs desde então.
Então há 300.000 anos começámos a ter os primeiros humanos. Mas onde estavam? Dispersos pelos 4 cantos do Mundo como hoje em dia? Acantonados em diferentes grupos em África, na Europa, na Ásia, nas Américas, na Oceânia? Não. Todos os nossos antepassados, literalmente todos, estavam em África. E nem sequer era na África toda: já há 3 milhões de anos que não se aventuravam muito para fora da zona da atual Tanzânia, na África Oriental. É verdade que, por essa altura, houve um ou outro Homo Sapiens mais rebelde que se afastou de casa, e alguns até saíram de África, mas foram casos isolados e nunca mais ninguém soube deles.
Mas, há cerca de 70.000 anos, um grupo de seres humanos juntou-se e resolveu ir à procura desses exploradores (ou quiseram simplesmente quebrar a monotonia). E puseram-se a caminho. Grupo após grupo, vaga após vaga, foram saindo da África Oriental e foram-se espalhando por todo o Continente Africano. Chegados ao Médio Oriente, enquanto que uns viraram à direita e foram para a Ásia e daí uns para a Oceânia e outros para as Américas, outros viraram à esquerda e foram para a Europa. E outros ficaram em casa, na casa-mãe de todos nós, como se comprova pela análise genética de povos como os Hadza, da Tanzânia, um dos povos mais próximos geneticamente dos seres humanos originais.
Bem, desde que começámos essas vagas migratórias, nunca mais parámos. Tal como as formigas, fomos ocupando o Mundo inteiro, cada canto, do frio do Pólo Norte ao calor tórrido das Grandes Planícies Americanas, passando pelas Selvas tropicais e pela Ilha da Páscoa. E fomos tendo filhos. E cada geração saía um bocadinho diferente da anterior. Ou um bocadinho mais escura ou um bocadinho mais clara, com o cabelo um bocadinho mais liso ou um bocadinho mais encaracolado, um nariz com narinas mais largas ou mais estreitas e por aí adiante. Pequenos ajustes que os nossos corpos foram fazendo como modo de nos adaptarmos e de sobrevivermos a todos os climas imaginários, aos alimentos que encontrávamos, às doenças a que sobrevivíamos. Mas como é que éramos no princípio, qual o nosso aspeto?
Bem, os tais Hadza de que já falei são uma referência bastante útil para responder a essa questão pois, como têm vivido praticamente no mesmo sítio isolados de outras comunidades desde há milhares de anos, com o mesmo clima e com os mesmos hábitos alimentares, os seus corpos não tiveram grandes motivos para se modificarem, pelo que devem representar de forma bastante fidedigna o aspeto dos nossos antepassados.
Portanto, partimos desta aparência de base e foi depois, por necessidades adaptativas, que fomos mudando de cor, ajustando cabelos e olhos e narizes e outros pequenos pormenores naquilo que é um modelo de corpo comum a todos os seres humanos.
Antes de continuar, deixem-me só reforçar esta ideia (mais do que consensual na comunidade científica): viemos todos de África. Todos. Temos todos os mesmos antepassados originais. Todos. Somos todos relacionados geneticamente. Todos. Continuando.
Agora que estabelecemos que temos todos as mesmas origens e que as nossas diferenças físicas se devem basicamente a adaptações ambientais, vamos falar de raças.
Para começar: Entre os seres humanos, existem diferentes raças? Bem, sim e não. Nota: Vou apresentar aqui uma resposta bastante resumida a esta questão mas, para quem a queira aprofundar, aconselho vivamente a leitura deste artigo da National Geographic sobre o assunto.
Quanto à aparente ambiguidade da minha resposta… Por um lado, a resposta é Não. Do ponto de vista científico, não existe fundamento para distinguir os seres humanos por raças. Para além dos aspetos físicos mais superficiais, não existem diferenças relevantes em termos de funcionamento dos órgãos, de desempenho intelectual, de desempenho muscular, de personalidade, etc, entre indivíduos de diferentes raças (ou seja, brancos, negros, aborígenes, etc). Aspetos como a alimentação, a cultura, as condições sócio-económicas, o contexto social, etc, são muito mais preditores desses desempenhos e dessas diferenças do que a cor da pele ou outras caraterísticas físicas habitualmente associadas às diferentes “raças”.
Agora, do ponto de vista social, existem diferentes raças? Bem, aí teremos que dizer que Sim. Mais do que grupos biológicos, tradicionalmente os seres humanos há muito tempo que se separam por grupos de caraterísticas físicas por razões de caráter social, o que faz da “raça” um construto social. Sobre este tema, sugiro a leitura deste artigo da Universidade de Harvard que explica de forma muito acessível o significado deste conceito.
Ou seja, enquanto construto social, a “raça”, tal como a nacionalidade, a religião, o género, a profissão, e outras sub-divisões da sociedade, ajudam a sociedade a organizar-se, a definir papeis para cada indivíduo e, tal como com outras formas de nos “agruparmos”, há vantagens e desvantagens nessa organização. E não faltam, ao longo da História, exemplos de como a “raça” foi usada para justificar diferenças artificiais entre seres humanos.
A este propósito, sugiro que leia sobre o conceito de Racismo Científico, o qual esteve na base de ideologias como o Apartheid ou o Nazismo.
Agora, tal como a nacionalidade não é preditora de comportamentos, nem a religião é preditora de capacidades intelectuais, nem o género é preditor de personalidades, também a “raça” não é preditora de nenhuma destas coisas. Cientificamente, olharmos, por exemplo, para uma pessoa “branca” e uma pessoa “negra” dá-nos apenas uma única informação sobre elas: que uma tem a pele mais clara e outra tem a pele mais escura. Para tirarmos qualquer outra conclusão, necessitamos de conhecer a realidade de cada indivíduo, o que vai muito para além da cor da pele.
Socialmente, temos que parar de nos colocar a nós próprios em caixas e de aceitar a infinita diversidade do ser humano. Cada um de nós é muito mais do que a cor da pele. E, por dentro, somos muito mais iguais uns aos outros do que diferentes. E somos família. Porque não se esqueçam: #SomosTodosAfricanos